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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Espaço arquitetônico do século 20

Categorias espaciais
Nova série de artigos estréia com um passeio pelas concepções de espaço arquitetônico formuladas no século 20

Por Edson Mahfuz


Embora desde que o homem construiu seus primeiros abrigos já tenha de fato criado e usado espaço arquitetônico, foi só no final do século 19, com o nascimento da estética como um ramo da filosofia, que a idéia de espaço passou a existir e a ser proclamada como a essência da arquitetura como arte. O fato de que o primeiro reconhecimento da idéia consciente de espaço tenha sido formulado em 1893 simultaneamente por Hildebrand e Schmarsow faz com que muitos pensem que nasceu com a arquitetura moderna, o que é incorreto, pois foi incorporada ao seu ideário apenas três ou quatro décadas depois.

A evolução do conceito de espaço na filosofia e na arquitetura é um tema fascinante e boa parte desse caminho já foi trilhado por Cornelis van de Ven em seu livro Space in Architecture. Eu me proponho a fazer aqui um rápido passeio por algumas concepções diferentes sobre a natureza e a constituição do espaço arquitetônico ao longo do último século, cada uma resultando em arquiteturas com características bastante específicas, concentrando-me naquelas concepções que parecem ter tido mais conseqüência e que, na sua maioria, permanecem vigentes.

As categorias que serão discutidas a seguir têm um ponto em comum: a sua relação com a arquitetura moderna, mesmo que seja de oposição. Deixo deliberadamente de fora certos desenvolvimentos recentes, variadamente chamados de deconstrutivismo, arquitetura informe, bolhas e dobras, arquitetura da catástrofe, arquitetura líquida, etc. A razão principal disso é sua falta de sistematicidade: aquilo que não pode ser descrito em poucas palavras igualmente não pode ser transmitido.



Villa Cornaro, Andrea Palladio, Piombino Dese, Itália, 1553
Não sendo uma discussão sobre o aspecto filosófico do conceito de espaço, a discussão e análise que seguem estão centradas em aspectos especificamente projetuais, ou seja, o modo como cada recinto é definido espacialmente, como se relaciona com os recintos contíguos e como se relaciona com o espaço exterior.

De início, é obrigatório definir os precedentes das transformações acontecidas no século 20. Esses podem ser resumidos sob o título "espaço pré-moderno", o qual identifica agrupamentos de recintos de forma regular, auto-suficientes, estanques, organizados regular e simetricamente, às vezes contidos em uma forma tridimensional regular, outras em composições de massas equilibradas. É fundamental entender que na arquitetura pré-moderna todos os diferentes subsistemas que compõem o edifício - estrutura portante, esquema distributivo, organização espacial, mecanismos de acesso, relação com o exterior e etc. - convergem e se confundem com a estrutura formal.

O primeiro passo na evolução do espaço moderno é, sem dúvida, a planta aberta wrightiana. Ao longo da última década do século 19 e da primeira do 20, Frank Lloyd Wright se dedicou ao "rompimento da caixa" da arquitetura tradicional, isto é, a transcender uma relação espacial que consistia na disposição de recintos estanques adjacentes. O que Wright introduz de novo é um procedimento que tem como resultado um aumento dramático na permeabilidade entre espaços contíguos e integração efetiva com o espaço aberto circundante.




Planta e vistas internas da casa Darwin Martin, Frank Lloyd Wright, Buffalo, Estados Unidos, 1902-04

Os meios empregados para esse fim são a redução do número de paredes externas e internas ao mínimo possível do ponto de vista estrutural, a interpenetração dos recintos, movimento diagonal e forma global decomposta, sem perder a clareza da configuração das unidades espaciais. Isso tudo é obtido mantendo muitos elementos menores da arquitetura convencional, o que pode talvez ajudar a explicar o êxito que sua arquitetura doméstica obteve nas primeiras décadas do século 20. Um aspecto muito interessante desse procedimento de Wright é o fato de que se aplica a edificações de qualquer tamanho, sejam elas grandes casas como a D. Martin, uma das chamadas prairie houses, e também às de tamanho reduzido, como as casas "usonianas" construídas por ele trinta anos mais tarde.

O próximo passo é representado pelo espaço neoplástico, essencialmente uma arquitetura anticúbica resultante da articulação de planos que podem assumir papéis variados e intercambiáveis como paredes, muros, coberturas, pisos, etc. Suas origens são o neoplasticismo holandês e a própria arquitetura de Wright. O resultado dessa combinação é uma arquitetura abstrata, essencial, caracterizada pela composição centrífuga a partir de um núcleo central. Duas de suas características mais notáveis são a abolição da dualidade entre interior e exterior pela ruptura das paredes convencionais e o uso das cores primárias como elemento de acentuação da sua planaridade. A arquitetura neoplástica é essencialmente volumétrica e antigravitacional no sentido de não revelar nada do seu peso real, resultado de uma construção formal cujo elemento compositivo fundamental é o plano retilíneo que pode assumir qualquer identidade.

Os exemplos mais completos de arquitetura neoplástica foram produzidos por Gerrit Rietveld, mas seus ecos podem ser encontrados durante todo o século 20, como em projetos de José Antonio Coderch, Eduardo Souto de Moura e Helio Piñón. Na casa Schroeder, de Rietveld, encontra-se o primeiro exemplo real de flexibilidade na configuração do espaço doméstico, resultando no que se poderia chamar de "planta transformável".


Casa Pope-Leighey, Frank Lloyd Wright, Falls Church, Estados Unidos, 1939
De modo quase paralelo ao neoplasticismo foi desenvolvido um modo de criar o espaço interior de enorme potencial, mas que foi surpreendentemente deixado de lado após a segunda guerra mundial. Trata-se do Raumplan, de Adolf Loos, termo que pode ser traduzido como "planta espacial", pois se refere a um ordenamento tridimensional ou vertical do espaço. Uma das características mais salientes desse conceito é a disposição de espaços cúbicos de diferentes proporções e alturas no interior de um volume prismático elementar. Esses recintos apresentam diferentes alturas de piso e forro e diferentes pés-direitos, de acordo com seu caráter e hierarquia. Como conseqüência, a visualização entre espaços se dá essencialmente sobre linhas diagonais. O caráter centrífugo desses projetos é evidenciado pela presença de alcovas agregadas aos espaços principais e pelo modo excêntrico ou assimétrico em que a circulação é resolvida, resultando em um movimento em espiral pelo corpo do edifício.

Casa Schroeder, Gerrit Rietveld, Utrecht, Holanda, 1923-24
Na arquitetura das últimas décadas, os únicos ecos da planta espacial loosiana de que se tem notícia estão em alguns projetos de residência de Mark Mack, arquiteto austríaco radicado nos Estados Unidos, e na obra inicial de Steven Holl.

A produção teórica e projetual de Le Corbusier é de importância decisiva para a arquitetura do século 20. Entre as suas muitas contribuições destaca-se a planta livre, solução possibilitada por uma invenção técnica de caráter mais amplo, o esquema Dom-ino, que na sua essência é um sistema estrutural constituído por uma malha homogênea de pilares e lajes superpostas, o que possibilita a independência entre estrutura, subdivisões e fechamento, e a liberação do solo e da cobertura como novas áreas de uso.

Geralmente contida em volumes compactos ou num agrupamento de tais volumes, a planta livre se caracteriza por proporcionar conexões visuais em profundidade tanto entre espaços interiores como em direção ao exterior. A essa extensão horizontal se soma a possibilidade de extensões verticais pela presença de pés-direitos duplos e/ou triplos.


Pavilhão de Esculturas, Museu Sonsbeck, Gerrit Rietveld, Arnhem, Holanda, 1954
A sua utilização implica alterações significativas na tradicional fachada maciça porque, se por um lado há uma perda de corporalidade, por outro há uma renovada tridimensionalidade, já que em muitos casos a fachada é formada por várias camadas materiais. Outro aspecto importante da planta livre corbusiana é a idéia de que a planta orquestra um percurso que conecta os espaços principais de forma narrativa: é o chamado caminho arquitetônico (promenade architeturale), herança da arquitetura francesa do século 19.
A arquitetura moderna, e especialmente a derivada do Dom-ino, significa uma transformação radical na natureza do artefato arquitetônico. Enquanto na arquitetura tradicional todos os subsistemas se confundem com a estrutura formal, na arquitetura moderna eles podem ser isolados e abstraídos. Essa independência permite não apenas o abandono da imitação como procedimento fundamental, mas soluções específicas para cada um deles.


Casa Müller, Adolf Loos, Praga, 1928-30
Usando como ingredientes a independência de sistemas propiciada por Le Corbusier, o neoplasticismo holandês e a ruptura wrightiana, Mies van der Rohe criou sua própria versão de planta livre. Em projetos como o Pavilhão Alemão de Barcelona, a casa Tugendhat e outros realizados na sua fase européia, encontra-se um interior sem divisões, em que planos verticais articulam o espaço criando, mais que recintos, ambientes que às vezes se estendem em direção ao exterior. Esse espaço, em que é clara a independência da estrutura portante, da compartimentação e do fechamento, está contido entre planos paralelos ao solo e se caracteriza pela extensão horizontal e pela volumetria irregular.

Esquema Dom-ino, Le Corbusier, 1915
Em todos esses desenvolvimentos até aqui descritos há uma característica comum que é eminentemente moderna, aquilo que Colin Rowe chamou de "composição periférica". Em vez de uma concentração espacial, de um movimento em direção ao interior como é visível em muito da arquitetura pré-moderna, a arquitetura moderna, ou pelo menos uma parte importante dela, se caracteriza por extensões em direção ao exterior e por tensionar as extremidades dos espaços. Esse movimento centrífugo é exatamente o que favorece a integração com o entorno, um dos princípios básicos da arquitetura moderna.

Planta da Villa Stein, Le Corbusier, Paris, 1927
Na fase americana da carreira de Mies van der Rohe surge uma segunda versão de planta livre, cujos aspectos mais notáveis são a volumetria compacta (os edifícios dessa fase são quase sempre prismas de base retangular), subordinação das subdivisões da planta à posição dos elementos estruturais, organização espacial simétrica e quase total separação do exterior. Não obstante a sua elementaridade, os pavilhões diáfanos miesianos representam duas estruturas formais que se tornaram canônicas: o volume retangular com estrutura resistente monodirecional externa, no qual o fechamento é coplanar com os pilares; e o volume quadrado coberto por laje nervurada bidirecional apoiada em um número mínimo de pilares periféricos, com o limite do interior recuado em relação à sua projeção.
Além dessas características mais óbvias, há nesses dois exemplos um equilíbrio entre ênfase periférica e tendência centralizante que demonstra a excepcionalidade desse arquiteto e a condição modelar desse tipo de edifício.


No período que vai do final dos anos 60 a meados da década de 80, a arquitetura moderna sofre uma série de revisões e surge algo que poderíamos chamar, por falta de um termo mais preciso, de espaço pós-moderno. Volta-se então a buscar maior integração dos diferentes sistemas, com o uso preferencial de paredes. Até mesmo paredes espessas como as do passado voltam a ser empregadas, embora não sejam mais maciças e abriguem funções secundárias no seu interior.

Como se fosse possível retornar no tempo, volta-se a criar espaços congruentes com sua envolvente estrutura, caracterizados pela compartimentação dos interiores e por volumetrias mais fechadas e nítidas.



Planta e vista interna do Pavilhão Alemão, Mies van der Rohe, Barcelona, Espanha, 1929
Além desses aspectos, que têm a ver com uma retomada da arquitetura do passado, há uma série de aspectos no espaço pós-moderno que lhe são específicos. Eu me refiro à tendência à inconclusão das formas e à influência de fatores externos na sua criação, a uma tendência à fragmentação e ao deslocamento do centro de controle espacial do edifício para o exterior - parece haver sempre a necessidade de um contexto de referência, seja físico ou histórico, para legitimar o projeto. Nesse sentido se afirma sua relação, ainda que oblíqua, com a arquitetura moderna. Quase todos esses atributos já podem ser encontrados na obra inicial de Robert Venturi e Charles Moore, desenvolvida nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70.
Já no final do milênio, arrefecido o ímpeto dos revisionismos que tentaram, sem êxito, substituir a arquitetura moderna, nos deparamos com a retomada de muitos princípios modernos e com várias extrapolações do velho esquema Dom-ino.


Casa de campo de tijolos, Mies van der Rohe, 1923

Crown Hall, Mies van der Rohe, Chigago, Estados Unidos, 1950-56
A retomada do Dom-ino é, no entanto, caracterizada pela sobreposição não coincidente de sistemas, pela falta de hierarquia, pela descontinuidade seccional e pela separação entre interior e exterior. Assim, vemos obras como a Mediateca de Sendai, de Toyo Ito, em que a familiar seqüência de lajes horizontais aparece suportada não mais por pilares pontuais mas por um sistema de apoios tridimensionais (em cujo interior há espaço para circulação de vários tipos) distribuídos irregularmente, numa espécie de atualização da planta livre original.


Galeria Nacional, Mies van der Rohe, Berlin, 1962-68
No projeto para a Biblioteca de Paris (Rem Koolhaas/OMA) estão presentes o volume prismático e compacto e a grelha homogênea de pilares, mas as lajes desapareceram: os volumes que abrigam as atividades principais parecem flutuar como peixes num aquário, como se pudessem mudar de posição.
Para concluir, é importante mencionar, ainda que de passagem, as inúmeras tentativas de projetar objetos que não configuram qualquer sistema espacial e são únicos, uma espécie de objetos sem passado nem futuro. Um exemplo disso, e dos menos radicais, é o Pavilhão Alemão do holandês MVRDV construído em Hannover (2000), em que cada pavimento é resolvido com total independência dos que estão acima e abaixo em termos de estrutura, fechamento e distribuição planimétrica.


North Penn Nurses Association, Robert Venturi, Filadélfia, Estados Unidos

Mediateca, Toyo Ito, Sendai, Japão, 2001



No século passado, o que chama mais atenção não é o aparecimento de vários modos de conceber o espaço habitado, mas a velocidade em que isso se deu em comparação aos séculos anteriores. Como na arquitetura não há evolução - pelo menos no sentido científico, em que um estágio supera e torna obsoletos os precedentes - conhecer aqueles modos de concepção espacial e suas conseqüências é fundamental para uma prática que aspire à relevância e permanência.


Biblioteca de Paris, Rem Koolhaas/OMA, Paris, 1989

Pavilhão Alemão, MVRDV, Düsseldorf, 2000
No entanto, o conhecimento do repertório é apenas um primeiro passo. O que é fundamental é desenvolver o espírito crítico necessário para avaliar a adequação e a pertinência de empregar os elementos desse repertório a cada situação. Isso estabelecerá a diferença entre episódios urbanos social e culturalmente relevantes e zoológicos arquitetônicos cuja profundidade não vai além da tinta que os recobre.

Edson Mahfuz é arquiteto formado pela UFRGS, pós-graduado pela Architectural Association de Londres e doutor em arquitetura pela Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos. É professor titular do departamento de arquitetura da UFRGS.

Fonte:http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/176/imprime116546.asp

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